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Abelardo da Hora, uma vida tomada pela arte
Abelardo da Hora, uma vida tomada pela arte

 

Em seu aniversário, o artista plástico fala sobre a vida aos 90 anos, política e mulheres

Das mãos de Abelardo da Hora, que completa 90 anos nesta quinta (31), foi erguido um mundo muito particular: de suas mulheres de bronze, curvilíneas e sinuosas; passando pelos tipos populares, retratados com paixão e afeto; às evidências de um País miserável, sem cuidados com seu povo. Mais do que escultor, ceramista, pintor e desenhista, Abelardo se consolidou como defensor do sonho de um País mais justo e horizontal. Isso vem sendo feito há décadas, seja através de sua atuação política - além de militante do Partido Comunista, foi um dos idealizadores do Movimento de Cultura Popular (MCP) - ou no papel de grande mestre de artistas como Francisco Brennand, Givan Samico e José Cláudio, quando estava à frente da Sociedade de Arte Moderna do Recife. Na entrevista concedida a Folha de Pernambuco, Abelardo conversou sobre a dor e a delícia de chegar aos 90 anos, suas memórias, planos para o futuro e a rotina intensa de trabalho. Confira abaixo a conversa.

 

Que espaço a arte ocupa em sua vida?  Todo o espaço. Uma vida completamente tomada pela arte, da manhã até a noite. Continuo trabalhando como um gigante. Na última segunda (28) mesmo, terminei uma peça nova e já estou começando outra. Será de uma mulher linda, deitada, em concreto. Essa vai para uma retrospectiva que, se tudo der certo, realizo na Europa no início do próximo ano. Tô com 90 anos e cheio de ânimo para acompanhar a exposição, que começa por Florença, na Itália, e segue para outras cidades.

Quais as maiores alegrias que os 90 anos lhe trazem?  Eu tenho tantas alegrias. Tantas mulheres maravilhosas que amei, uma família maravilhosa que constituí. Tive a sorte do mundo, porque conheci uma mulher maravilhosa logo na minha primeira exposição, em 1948, com quem vivi durante 62 anos e fiz uma família de sete filhos, todos incríveis. Vai fazer quatro anos que Margarida faleceu (devido a problemas respiratórios, em novembro de 2010), coitada. As dores vieram pra ela num crescendo que se tornou insustentável.

E quais foram suas maiores dores nesses 90 anos?  Foi exatamente o Golpe Militar. Fui secretário de educação do Recife durante o mandato de cinco prefeitos, entre eles Miguel Arraes, Liberato Costa Júnior e Pelópidas Silveira. No terceiro mês em que eu era secretário de Pelópidas, houve o Golpe, na virada do 31 de março para o 1º de abril de 1964. Os militares nos prenderam. Tive até pena de morte decretada contra mim, porque era da direção estadual do Partido Comunista.

Como foi o tempo na prisão?  A prisão é uma desgraça. Os bandidos haviam assumido o poder, rasgado a lei, desrespeitado todos os trâmites legais. Mataram pessoas inocentes, idealistas. Sou o único sobrevivente da direção estadual do partido, e isso só aconteceu porque era cunhado de (Augusto da Silva) Lucena, que foi nomeado prefeito do Recife à época. Não fosse isso, eu estaria morto, e não dando essa entrevista a você. Fui preso com Gregório Bezerra, que foi posto numa espécie de casa de cachorro. Ele não podia sequer sentar, tinha que ficar acocorado. No terceiro dia retiraram ele de lá, amarraram seu pescoço num carro de combate e o arrastaram de uma área perto do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Recife) até a Praça de Casa Forte, diversas vezes. O próximo ia ser eu.

Como é sua rotina atualmente?  É de trabalho constante, eu não paro. Uma obra leva cerca de três meses para ser concluída. É preciso pensar em sua forma, desenhar, modelar, tirar a forma e depois mandar para a fundição. É um processo intenso que me revigora todos os dias. O resto do dia é ter as refeições, descansar um pouco, ler jornais, ver desenhos com meus netos e atender as pessoas amigas. Elas vêm aqui, são admiradores. Muitas foram namoradas (risos). E eu ainda namoro, porque não morri ainda.

Quais seus planos para o futuro?  O que desejo é conviver o resto dos meus dias com minha família. Não tem como não ser feliz dessa maneira. Meu esforço é para que minha relação com meus filhos continue harmoniosa e tranquila. Minha família foi uma coisa abençoada que tive, um grande prêmio. Todos os domingos nos reunimos para almoçarmos juntos. Já perdi a conta dos netos. Tem um bisneto que toda vez que chega aqui me diz que é o dono da casa, veja se pode. Ele tem sete anos, chega aqui, toma a minha boina e diz isso. É uma alegria imensa ver-se perpetuado.

O senhor tem medo da morte? Tenho não, porque já estive junto dela várias vezes. Quanto estive preso, por exemplo. Fui detido mais de 70 vezes. Minha atuação política foi sempre em nome do povo. Sempre que montávamos um centro de estudo do petróleo (nas campanhas a favor da proteção do petróleo brasileiro), eu era preso. Se não fosse por nós, não haveria nem Petrobras hoje. Quando estava no Partido Comunista, fui detido até por defender a paz mundial e me posicionar contra a bomba atômica.

O senhor ainda acredita na política como um agente transformador para a sociedade? A política é um instrumento que dá a você a possibilidade eleger as figuras políticas que vão dirigir o seu país, a sua terra. É a coisa mais importante que há para o cidadão. Governantes e candidatos precisam ter mais consciência para que realmente haja um salário menor para eles e que eles trabalhem mais com amor ao povo do que ao dinheiro. Isso eu defendo desde muito tempo, e me decepciono muito com o que está por aí. Se ainda temos grandes homens, nomes da política? Acho que Lula, ele levou o Brasil no braço e materializou sonhos. Continua sendo a esperança que temos nesse País. Ele teve uma escola espetacular, que foi a dos sindicatos.

Está animado para celebrar os 90 anos? Estou animado porque meus filhos não me deixam desanimar. Sou naturalmente uma pessoa alegre, pra cima. Depois, sou ligado às músicas carnavalescas, porque sou irmão de Claudionor Germano (ao lado de Abelardo durante a entrevista), que canta frevo. Com frevo, meu Deus, como alguém pode ficar triste? Sou louco por marchas de bloco, ouço todo dia. Toda vez que sento para almoçar, a empregada liga a radiola com marchas de bloco. Já tive uma grande coleção de música erudita, mas perdi. Hoje sou só frevo.

Que gostaria de ser se não fosse artista plástico? Gostaria de não ter nascido. Porque a vida é realmente um sofrimento muito grande. É muito triste você ver ao seu redor todas essas misérias. A série de gravuras "Meninos do Recife" (reunidas em álbum lançado em 1962) mesmo mostra isso. Presenciei muita desgraça nas palafitas à beira da maré. Josué de Castro chegou aqui e pediu para que eu cedesse um desenho para ilustrar a edição francesa de seu livro "Geografia da fome". Era uma mulher caçando mariscos com o filho. Ela acocorada no chão, coitada, quase sentada na lama, com uma pazinha, catando os bichos. É muito triste, companheiro. A vida é cruel, não é brincadeira.

O que o senhor deve às mulheres da sua vida?  Devo tudo, devo a minha vida a elas. Sem elas, não existiria eu, não existiria você. Acho que minha obra pode ser chamada de "Amor e solidariedade". O amor eu dedico às mulheres, por toda a beleza, sentimento e vida que me deram. A solidariedade eu dedico ao povo, à sua criatividade popular. Minha missão sempre foi essa, de andar de braços dados com o povo, lutando contra as injustiças sociais, protestando contra as barbaridades e misérias que  se fazem contra o povo.

fonte: folhape